Nossa Senhora do Crack: rogai por eles
O assunto crack e a cracolândia seguem “na crista da onda” e parece ter voltado com força total esta semana depois da ultima operação policial batizada de “sufoco” na cracolândia em São Paulo; uma vez que pudemos observar uma avalanche de informações e comentários em telejornais, rádios, matérias diversas de jornais, comentários em blogs, algumas mídias sociais e até mesmo no bate papo informal matinal da padaria. Todo mundo parece ter um olhar, uma opinião, uma crítica, uma indignação ou revolta, uma desculpa, uma omissão, uma negligencia ou uma sugestão para um problema antigo; leia-se crônico desde a década de 90. Mas certamente um assunto não menos polêmico e que não tem uma solução única, de curto prazo, isolada, mágica e, sobretudo fácil para sua resolução. No entanto, cabe aqui ressaltarmos algumas questões que são extremamente importantes na articulação destas estratégias do ponto de vista da incorporação da saúde pública neste “arsenal de táticas” que deveriam fazer parte do plano de ações para organizar os serviços para dependentes de crack. A‘indústria’ do tratamento da dependência química- como descritos pelos professores Kimberly & MacLellan (2006)- está repleta de problemas estruturais e organizacionais que afetam negativamente a efetividade do serviço prestado. Se por um lado observamos alguns avanços nas intervenções farmacológicas, nas técnicas comportamentais e na integração do sistema social na prestação de cuidados a este público, por outro temos serviços com extrema dificuldade de trabalhar em rede, alta rotatividade de profissionais, inadequado financiamento para os serviços oferecidos, conselheiros, monitores e técnicos com baixa remuneração e não necessariamente com habilidades para exercerem as funções que ocupam e efetivamente desempenhar uma boa prática clínica.No Brasil, o panorama nacional não é muito diferente deste descrito pelos pesquisadores americanos. Uma vez que observamos um cenário carente de modelos específicos de atendimento para o dependente de crack e, sobretudo, mais eficientes. Vivemos um momento no qual a carência de leitos para internação de usuários de drogas, somados a ausência de uma real política de saúde nacional operante ao dependente de crack e os ‘ideologismos’ diversos que ainda reinam nesta área têm gerado dispositivos com potencial de atendimento terapêutico limitado, desvinculado muitas vezes das necessidades locais e pouco baseado em evidências científicas. A falta de leitos públicos e o desespero e a urgência de famílias diante do desmoronamento causado pelo crack aumentaram rapidamente o comércio imoral de clínicas de tratamento sem qualquer registro na vigilância sanitária. Muitos destes serviços são desenhados a partir da experiência pessoal do gestor, do profissional contratado ou do voluntário. Nestes casos, as chances são maiores de pouca resolutividade e principalmente prática de abordagens inadequadas e pouco efetivas. Constantemente nos deparamos com noticiários nos jornais e na televisão de ‘clínicas para tratamento da dependência química’ onde existe extremo desrespeito, maus-tratos, imperícia, negligência e aviltamento de direitos.Vários especialistas da área têm sugerido que os melhores programas de tratamento para o usuário de crack deveriam oferecer uma ampla gama de estratégias terapêuticas e a combinação de recursos necessários para atender as demandas específicas e múltiplas de usuários desta droga. Assim, por exemplo, serviços que operam com longas listas de espera tendem a ser menos eficazes, uma vez que sabemos que usuários de crack são muito difíceis de serem manejados enquanto estão em lista de espera. A prioridade deve ser dada para métodos que encorajam e ofereçam apoio aos usuários assim que eles passam pela porta de entrada dos serviços, ou seja, incorporam o sistema chamado em outros países como modelo Drop in ou aqui no Brasil de ‘porta aberta’ o qual parece na prática funcionar apenas como uma teoria nas portarias do ministério da saúde. Assim, os serviços idealmente devem oferecer um contato inicial e rápido para garantir que a motivação do usuário de crack para entrar em tratamento não seja perdida.A tendência atual então é oferecer o chamado ‘cardápio de opções terapêuticas’; ou seja, estratégias de reconhecida evidência científica, as quais combinam farmacoterapia (daí a importância do médico como um profissional atuante e integrante destas ações), abordagens comportamentais (Ex; terapia-cognitiva comportamental, entrevista motivacional, prevenção de recaídas, treinamento de habilidades sociais e manejo de contingência), reconhecer os grupos de mútua ajuda como um aliado e encorajar a participação do modelo 12 passos (Narcóticos Anônimos) ‘on site’ na rede de cuidados de intervenções, espiritualidade e terapias complementares (Ex: educação física), diferentes tipos de dispositivos de tratamento (Ex;comunidade terapêutica, ambulatório, hospital psiquiátrico, CAPS –AD, Pronto socorro, unidade básica de saúde).Um erro técnico neste aspecto é oferecer estratégias ou abordagens terapêuticas que não foram devidamente avaliadas do ponto de vista científico com replicação para o “mundo real’. Por exemplo: não existe evidência científica suficiente que Tai Chi Chuan (técnica de meditação e movimento oriental) seja efetiva para o tratamento de usuários de crack como abordagem isolada e não complementar. Assim como, tem-se ainda muito pouca informação nacional a respeito da efetividade e custo benefício dos chamados “consultórios de rua” e as “tendas de escuta” para tratamento do usuário de crack. Outro erro técnico é acreditar ingenuamente que planejamento e implantação de serviços em saúde mental (e para usuários de crack) podem ocorrer sem a participação de psiquiatras, médicos generalistas e de usuários em recuperação.Além disto, soma-se a necessidade de existir diretrizes gerais e estratégias para o tratamento de diferentes populações (mulheres, grávidas, adolescentes, transgêneros, idosos, usuário com histórico forense, por exemplo). Também para pessoas que querem parar de usar, indivíduos que querem apenas diminuir o uso de crack (se é que isto é possível !) e pessoas que não querem em hipótese alguma parar de usar o crack. A prioridade assistencial deve ser sempre as crianças, os adolescentes e as gestantes; com a ampliação e criação de serviços específicos para o tratamento ambulatorial e de internação para essas populações. Nenhum adolescente deveria ficar sem receber o melhor atendimento possível e disponível, incluindo o ensino escolar, uma vez que às repercussões e prejuízos do uso de crack nesta população são imensos.Muito embora os tratamentos atuais para dependência química caminhem no sentido de ser estimulado o caráter comunitário e vinculado a comunidade, isto não pode ser confundido com tratamento sem necessidade de internação. Tanto a internação psiquiátrica em hospital psiquiátrico quanto a internação em leitos de hospital geral são recursos que muitas vezes são extremamente necessários em algum momento do processo de recuperação do dependente de crack. Internação não significa também que este já é o tratamento em si, uma vez que o tratamento deve ser longo e engloba uma série de etapas quem vão muito além da mera internação.O caráter compulsório, voluntário ou involuntário da internação (conforme prevê a lei 10216) carece seguir critérios médicos os quais orientam esta indicação baseada mais em insucesso de tratamento ambulatorial prévio, presença de ideação ou risco de suicídio, risco de morte eminente, riscos para terceiros e presença de sintomatologia psicótica grave associada ao uso de crack do que celeumas dogmáticas e ideológicas frente à questão da internação psiquiátrica e a involuntariedade. Lembrar que um dos 13 princípios de tratamento eficaz sugerido pelo National Institute on Drug Abuse (NIDA) diz que o tratamento não necessita ser voluntário para ser eficaz assim como, outros pesquisadores internacionais já documentaram através de revisões clínicas que a involuntariedade pode ser fundamental em determinados casos onde a premissa da negação é duradora e com riscos.Pelo fato do uso de crack ter implicações com diversas comorbidades clínicas (Ex: AIDS, hepatite, infecções sexualmente transmissíveis, tuberculose) freqüentemente existe a necessidade de avaliação de outras especialidades médicas e este perfil de pacientes irá beneficiar-se de internação em enfermarias de psiquiatria no hospital geral. No Brasil, infelizmente as unidades psiquiátricas em hospitais gerais nunca foram uma prioridade, sendo que a situação nacional atual mostra que contamos com cerca de 415 hospitais gerais com apenas 2568 leitos em todo o território nacional.Portanto, o usuário de crack necessita de uma ampla rede de cuidados mediante a complexidade de cada caso, sendo o tratamento é em longo prazo, uma vez que estamos falando de uma doença crônica e que cursa com recaídas. Entre os princípios gerais destes cuidados estão: serviços próximos a residência dos pacientes, intervenções estruturadas tanto para os sintomas quanto para as incapacidades, deficiências e reabilitação social, tratamento específico para o diagnóstico e para as necessidades dos pacientes, serviços que refletem as prioridades dos seus usuários, serviços com coordenação, mais serviços com capacidade de mobilidade do que serviços com atuações estáticas. Reconhecer a complexidade destas ações e integrar estas práticas são esforços que merecem ser incentivados para que mais serviços com vocação de se articularem com a comunidade, usuários, familiares, profissionais, planejadores, elaboradores e provedores de políticas públicas e pesquisadores possam crescer em prol do direito humano do melhor cuidado consonante com a sua necessidade.Enquanto isto não acontece, será que nos resta apenas rezar para a “Nossa Senhora do Crack” criado na rua Apa no ano passado e que teve vida polêmica e brevíssima de milagres na cracolândia?
Alessandra Diehl
Psiquiatra da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD)/UNIFESP/ INPAD, especialista em Dependência Química e Sexualidade Humana
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Equipe A.R.C.A.
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- Tratamento para usuários de drogas e familiares: Modelo 12 Passos - TCC.
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Coordenador: Tadeu Assis - Técnico em Dependência Química.
Contato: (22) –9914.3450
domingo, janeiro 15, 2012
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Um comentário:
Querida amiga
Seria possível me mandar o e-mail da psiquiatra que escreveu este artigo?
Naão sei sej á lhe disse, sou jornalista e estou escrevendo uma reportagem para uma revista evangélica de circulação nacional. Então gostaria de entrevistar a psiquiatra.
Abração
MariaJosé
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